abril 24, 2020

A revolução, ou estes gajos não se entendem nem à paulada, vou passear!

Eu em 1974...

    Era dia de escola, mas por qualquer razão rara deixaram-me preguiçar na cama (ainda hoje gosto de dormir de manhã), fiquei grato, todavia estranhei o sossego. A minha avó, que me pregava sermões por eu dormitar mais do que a conta, estava lidando pela casa numa aflitiva bonança. Deixou-me curioso; fui averiguar, desci as escadas com muito cuidadinho, avizinhava-se um berro, claro. Lá estava a velha, espantosamente serena, não disse nada, – hoje tenho esta imagem como prova que a revolução foi pacífica – estava atenta ao rádio: tocava uma música estranha. Talvez fosse feriado, ou estava maluca. Perguntei se tinha de ir à escola, fui informado que não havia escola: tinha havido uma revolução, andavam aos tiros em Lisboa para derrubar o governo, tudo dito com um ar de alegria. Estava maluca de certeza: dias antes, contara-me com ar de orgulho que, quando de um atentado à bomba contra um tal de Salazar falhou, ela tinha ido de um lado a outro de Lisboa a pé em peregrinação, para entregar flores ao sortudo, tal não era a sua militância. As revoluções têm este efeito “secundário” nas pessoas, fiquei mais tarde a saber.
    No outro dia quando a poeira assentou pude sair à rua, já não era a mesma de dois dias atrás, havia sorrisos que eu desconhecia e o ar era fresco e engraçado: há uns quinze dias, uma vizinha que era viúva, prostrou-se a gritos dilacerantes pela rua afora, houve comentários que previam que ia chorar para sempre: tinha-lhe morrido o filho na guerra. Não fora aquela coisa dos cravos a enfeitar G3's (diga-se de passagem, uma mariquice quase poética) e aquela rua tinha ficado perpetuamente sobranceira àquela névoa de amargura.
    Fui levado dias depois, pelo o meu pai, a ver uma manifestação (primeira e última) do dia 1º de Maio no mesmo sítio onde o Américo Tomás tinha “abençoado” a populaça. Estava tudo com ar de desconfiado, podiam andar bufos por lá e a coisa ainda não estava de pedra e cal; mas lembro-me que para o fim do dia toda a gente espetou dois dedos ao céu (como a meter o dedo nu cu da outra senhora) aos gritos de “MFA” e “O Povo Unido...”. 
    Antes deste dia, pelos meus anos, a família juntava-se toda lá em casa para contar histórias: tios e primos estavam em África espalhados pela tropa toda, e a coisa dava aventuras emocionantes por terra, ar e mar em que as partes sangrentas eram estrategicamente omitidas. Nos aniversários seguintes todos guerreavam “política”, a guerra é coisa menos barulhenta e também mais pacífica; nunca mais tiveram denominador comum. 
    Um desalento.   
    Comecei a dedicar-me a coisas mais essenciais: ir à praia, para tal bastava uma toalha a tiracolo e uns chinelos; sempre que havia oportunidade, ajudava os pescadores a descarregar o peixe, enchendo cestas de vime que eram atiradas e descarregadas no cais (coisas de camarada); a minha falta de jeito para a bola (aliás imortalizada o ano passado pelo poeta Vieira Calado no livro “Estórias de Lagos & Arredores”, em prosa) deixava-me com outras opções, vagueava por todo o lado quando me apetecia, em absoluta contemplação da Criação (o mais próximo que cheguei de uma verdadeira experiência religiosa); de vez em quando parava na carpintaria do meu pai para construir objectos de madeira (espadas e coisas do tipo, para a malta brincar lá na rua). Destes dias guardo as memórias mais agradáveis, também eu tinha conseguido a liberdade, mas à minha maneira.

Sem comentários: