fevereiro 21, 2007

À finura

SEGREDOS DA ARTE MÁGICA SURREALISTA
Para fazer discursos

Fazer-se inscrever, na véspera da eleição, na lista de
candidatos do primeiro lugar que ache bom proceder a esse
gênero de consulta. Cada um tem em si o material de orador:
tangas multicores, vidrilhos das palavras. Pelo surrealismo ele vai
surpreender o desespero em sua pobreza. Uma tarde, numa
estrada, ele sozinho cortará em pedaços o céu eterno, esta Pele do
Urso. Vai prometer tanto, que se cumprir mesmo uma
insignificância será uma consternação. Dará às reivindicações do
povo todo uma entonação parcial e derrisória. Obterá a comunhão
dos mais irredutíveis adversários num desejo secreto que acabará
com as pátrias. E conseguirá isso com apenas se deixando exaltar
com a palavra imensa que derrete em piedade e rola em ódio.
Incapaz de um desalento, brincará sobre o veludo de todo sos
desalentos. Será mesmo eleito, e as mais suaves mulheres o
amarão com violência.

em: Manifesto do surrealismo (1924) André Breton
Agora compreendo como certos patifes chegam ao poder. E vejo agora, com toda a clareza, que tudo o que fazem é para serem coerentes com a sua corrente estética.

fevereiro 13, 2007

Post de homenagem à abertura do blog Vieira Calado


UM BARCO NA NOITE


Está positivamente no fim do meu dia

Deixei para trás de mim a cidade
quando um último gesto do sol
alongar definitivamente a sombra dos prédios
quando a primeira rajada do vento
me trouxer o piar do mocho.

Entrarei pelo silêncio adentro
caminhando à luz escoada doutros mundos
e a negra enorme esfera impensável
continuará indiferente ao ruído dos meus passos.

No valado de pedras do caminho
escondeu-se há muito o réptil repugnante
e passarei entre as árvores estátuas pregadas na noite
com a mesma ligeireza tímida de há vinte anos.

Que horas são? Duas? Não. Quase três.

A esta hora uma mulher qualquer vende-se num quarto.
A esta hora um homem qualquer bebe sozinho num bar.
A esta hora um pai qualquer espera a notícia
e fuma muitos cigarros pensando
na grande responsabilidade do filho.
A esta hora uma virgem qualquer resiste ainda
mas não há solução para mais tempo.
A esta hora um imigrante qualquer, vai, atlântico fora
o olhar imenso pregado no horizonte.
A esta hora um velho qualquer morre definitivamente
e o parente mais próximo chora de mais terror que pena.
A esta hora o cadáver apodrece as horas
e o vizinho do lado vestiu-se de vez
duma eterna consistência fóssil.

A esta hora o sábio matemático alemão
estuda a inclinação necessária
para o astronauta
.....ir
......e vir
e saber-se enfim se temos vizinhos
do outro lado da lua.
A esta hora, nos confins do cosmos,
um matemático qualquer inventa a incógnita
e começa a resolver tudo
com uma simplicidade incrível.
A esta hora, uma estrela, ia jurar,
uma estrela qualquer ruiu estrondosamente
num céu qualquer
e já, caótica, se ergue nos destroços a afinidade
dos átomos,
que o tempo eterno soprou-lhe outra vez
o princípio.

A esta hora, ah, a esta hora,
a esta hora a prostituta faz o troco e sai
com a mesma naturalidade com que entrou.
A esta hora o homem do bar bebeu já muito
e perde a noção de tudo.
A esta hora, o pai é efectivamente pai e chora
de alegria,
sem saber que apenas cumpriu a lei do mundo.
A esta hora, a virgem, rendeu-se
sonâmbula, magnifica, com o brilho intenso
da eternidade
nos olhos.
A esta hora, o emigrante é já mais velho do que era
e menos tempo que o tempo necessário espera.
A esta hora o vizinho do lado e o outro
fazem planos para o tempo infinito.
A esta hora o sábio matemático e o outro
pressentiram nitidamente um fragor enorme
mas não têm a noção exacta da amplitude do espaço,
o sábio matemático e o outro não têm ideia nenhuma
de que a esta mesma hora
as minhas árvores de há vinte anos
me olhem com a mesma indiferença de estátuas,
que a minha timidez de há vinte anos
me assalte a face ao calor da terra
me apresse os passos ao piar do mocho
me esmague o sangue à imensidade das estrelas;
o sábio matemático e o outro não fazem ideia nenhuma
do que seja ver morrer o sol sobre a cidade
e entrar pela noite adentro como um barco,
só para estender-me ao comprido numa cama curta
e deixar que os olhos se me fechem lentamente
e que os sonhos me invadam no silêncio,
até que o sol, de novo no horizonte,
me erga o braço vacilante
e me ensine o poema que procuro
e por dias e dias
não encontro.

©Viera Calado

em : “ O FRIO DOS DIAS ”

Blog: Vieira Calado