junho 02, 2007

ao meu menino


Parabéns rapaz, pelos teus 19 anos e quero que fiques a saber,
tu és o ser humano mais decente que conheço.
E obrigado por me teres levado à pintura

abril 20, 2007

A Saga de Mary Elizabeth

I - “London mist”

O sol pôs-se por detrás da velha Londres, começou a chover. Para se abrigar daquela chuva maçadora, Mary Elizabeth, refugiou-se num café de Monmouth Street; dali até à estação de Covent Garden é uma milha completa. O aroma a café, num ambiente quase parisiense, é convidativo. Sentou-se junto à janela, olhou para a rua, aquele entardecer assemelhava-se ao seu ânimo e julgou, por um breve instante, ver na janela o reflexo do seu ser. Estivera a libertar objectos de seu cativeiro, em armários e gavetas, num ritual de exumação; eram os pertences de sua mãe, a prova de uma vida que já não o é, e isto deixara-a macambúzia (Patologia de que só alguns herdeiros padecem). Decide demorar-se no café, se recuperar ânimo voltará aquela casa, sede de sua linhagem. Tem forçosamente que empacotar o resto das tralhas, o leilão está próximo e ela espera fazer uma boa maquia; pois decidiu que com aquele dinheiro, mudará o rumo de sua vida.

Mary Elizabeth vive em Surrey, num subúrbio de Londres, local que sempre lhe pareceu desengraçado, ela era afinal uma cockny de gema, mas Jack one-to-many, o seu consorte, um aguarelista de renome, preferia o paladar da cerveja local. Mary é uma típica London girl e a pasmaceira dos arrabaldes, com aqueles verdes monótonos, não lhe corre nas veias. Já pensara no divórcio, mas a fé em Cristo do filo: apostólica Romana, herdada pelo ramo familiar Escocês, não a permitia; embora a verdadeira obstrução fosse aquela disposição paternalista, a sua melhor e pior qualidade.

Em cima da mesa do café estava um livro. Alguém o deixara ali por esquecimento, na capa lia-se: “Essencial “AA” Algarve guide book”. Para se distrair, folheou páginas ao acaso, mas para sua surpresa deparou-se com paisagens vividas e rostos perturbadores, jamais em seus sonhos mais rocambolescos imaginara aqueles olhares masculinos em paisagens magníficas que a paleta de Jack jamais poderia igualar. Inexplicavelmente, pela primeira vez, um descontrolado arrepio lascivo trespasso-a. Meteu o livro no bolso do casaco. Acabou o café, pensou para si “It can’t rain all the time”; saiu com ar de quem diz, quem morre não adoece.
Dissolveu-se em dégradé no “London mist”.


abril 12, 2007

obrigado Tartufos


Anda um exército amaricando a cidade, limpando ruas, pintando onde caíram cafelos e tirando as teias de aranha dos cantos; tudo para cair bem ao olho de umas excelências que daqui a dias vêm inaugurar umas merdas que, para funcionar em condições, necessitam de fita cortada a preceito e benzeduras, não vá o diabo tece-las.

Lembro-me de quando tinha sete anos, um fulano que dava pelo nome de Américo veio cá ao Burgo cortar umas fitas e empanturrar-se com lagostas. O ritual foi o mesmo, tudo foi bem ataviado, a relva bem capinada, uma azáfama imensa; o tempo, como é sabido, não deve nada a um e ao outro.

Então, andava eu na primária e a mestre-escola, rapariga visceralmente afectada pelas benignidades da velha senhora e destemida esgrimista de ponteiros, ordenou que as batas tinham de andar bem ataviados pois, caso fossemos sujos, as virtudes do ensino da época, a chamada ponteirada nos cornos, trabalhava; é que nós íamos prestar guarda de honra a um fulano muito essencial.

Eu, para não me deixar enganar, e como o canastro já estava malhadiço, tratei de cagar a farpela pois não queria encarneirar com o resto da trupe e dar boas vindas a alguém que era mal falado lá em casa. A regente não se arreliou, sabia da minha irreverência e do perigo de a fazer passar alguma vergonha. Embora me tivesse sido fornecida uma cifra indeterminada de reguadas, foram as ditas aliviadas pela protecção dum pelo de cão estrategicamente colocado; o desfecho teria sido pior sem esta contra medida. De qualquer modo, fui levado a ver o dito cujo.

As cavalitas do meu pai eram um local estrategicamente confortável, e a manada de moços pequenos, à cota zero, pareceu-me bastante infeliz, pelo que os saudei com uma ilustre língua de fora. Desconhecia que no mundo houvesse tanta gente. O Américo era seguido por um séquito de fulanos e beltranos, que tiveram direito a colcha nas janelas, e uma multidão de papalvos a aclamá-los com bandeirinhas e fogosos vivas a qualquer coisa. Nada do que pronunciou foi entendido pois naquela altura microfones e aparelhagens sonoras eram coisa rara mas, mesmo assim, falou muito bem. E aquele bando de jumentos formava uma maré de empatia fêmea. Coisa sinistra.

Aquele era o fulano que habitava a minha sala de aulas com mais dois companheiros, um de braços abertos, estrategicamente colocado por cima e ao meio do quadro de ardósia, o outro como o primeiro, o da cachimónia árida que cá tinha estado, ocupavam os flancos. Sem ninguém o saber, tudo aquilo prosperava para o declínio e aqueles mariolas, passado algum tempo, foram, todos três, saneados juntamente com aquela detestável criatura temente a deus que nos dava escola; aquela ardósia, agora a solitária, ganhou outra beleza.

Passados alguns anos, no primeiro dia de escola do meu filho, levei o rapaz pela sala de aula adentro. O momento era importante e com alguma nostalgia contemplei tudo aquilo. Também me sentara naquelas cadeiras. E lá estava a ardósia negra da minha infância mas, para meu espanto, o gajo que estava pregado na cruz, o do meio, e que tinha sido saneado com os outros dois fora reabilitado e estava agora solitário e em domínio absoluto; segundo me foi informado pelo “híbrido” do mestre-escola.

É provável que, se algum dia tiver netos, estes irão contemplar os fulanos que habitam os cantos de quadros de ardósia.
Para já, agradeço a visita destes Tartufos. Com o cortar das fitas e o papar de almoços vão-se limpando as ruas do mundo. Caso contrário, continuariam sebentas.

março 02, 2007

Dia Mundial do Teatro


O Dia Mundial do Teatro foi criado em 1961 pelo Instituto Internacional do Teatro (ITI). O Dia Mundial do Teatro celebra-se anualmente a 27 de Março nos Centros ITI e na comunidade teatral internacional. Organizam-se diversos eventos nacionais e internacionais para assinalar a ocasião. Um dos mais importantes é a circulação da Mensagem Internacional, tradicionalmente escrita por uma personalidade do teatro de dimensão mundial a convite do Instituto Internacional do Teatro.


Mensagem Internacional

Foi durante meus primeiros anos de escola que eu me tornei fascinado pelo teatro, aquele mundo mágico que me cativou desde então.

Os inícios foram modestos, um encontro casual que eu só via como uma actividade extracurricular para enriquecer a mente e o espírito. Mas foi muito mais do que isso quando eu me tornei seriamente envolvido como escritor, actor e director de uma produção teatral. Recordo-me que foi uma peça política que irritou as autoridades daquela época. Foi tudo confiscado, e o teatro foi fechado diante dos meus próprios olhos. Mas o espírito do teatro não pode ser esmagado pelo peso das botas de soldados armados. Esse espírito procurou refúgio e determinado se alojou no mais profundo do meu ser, fiquei completamente ciente do vasto poder do teatro. Foi então que a verdadeira essência do teatro teve impacto em mim da maneira mais profunda, levando-me a estar absolutamente convencido do que o teatro pode fazer à vidas das nações, particularmente frente aqueles que não podem tolerar a oposição ou as diferenças de opinião.

O poder e o espírito do teatro se enraizaram profundamente na minha consciência ao longo dos anos na universidade do Cairo. Avidamente lia quase tudo o que foi escrito sobre teatro, e vi os diversos alcances do que era apresentado em palco. Esta consciência se aprofundou ainda mais nos anos subsequentes, enquanto eu tentava seguir os últimos progressos no mundo do teatro.

Em minhas leituras, sobre teatro, desde o tempos da Grécia antiga até à actualidade, eu tornei-me ciente da mágica interior que os muitos mundos do teatro têm o poder exercer. É desta forma que o teatro alcança as profundidades recônditas da alma, e abre os tesouros que se encontram escondidos nas profundidades do espírito humano. Isto fortaleceu minha já imperturbável fé no poder do teatro, no teatro como um instrumento do unificação através do qual o homem pode difundir o amor e paz. O poder do Teatro também permite que se abram novos canais de diálogo entre raças diferentes, etnias diferentes, cores diferentes e credos diferentes. Isto ensinou-me pessoalmente a aceitar os outros tal qual como são e me deu a convicção de que na bondade a humanidade se pode manter unida, e no mal a humanidade poderá ser unicamente dividida. De facto, a luta entre bem e o mal é intrínseca aos códigos do teatro. Finalmente, todavia, o senso comum prevalecerá e a natureza humana em seu todo se agrupará em si a tudo o que é bom, puro e virtuoso.

As guerras com que a humanidade tem sido afligida desde tempos ancestrais têm sempre sido causadas por instintos ruins que simplesmente não reconhecem a beleza. O teatro aprecia a beleza, e poderia argumentasse que nenhuma forma de arte é capaz de captar a beleza com maior fidelidade do que o teatro. O Teatro é um receptáculo que abrange todas as expressões de beleza, e aqueles que não valorizam a beleza não podem valorizar a vida.

Teatro é vida. Nunca houve uma época como a de agora em que é incumbindo a todos nós denunciar guerras fúteis e as diferenças doutrinais que frequentemente levantam as suas caraças, determinados por uma consciência vibrante de responsabilidade. Necessitamos de pôr fim às cenas da violência e matanças aleatórias. Estas cenas têm se tornado corriqueiras no mundo de hoje, somente agravadas por diferenças abismais entre a opulência perversa e abjecta pobreza, e por doenças como a “sida”que têm devastado muitas partes do globo e derrotado os melhores esforços de erradica-la. Estes males são, juntamente com outras formas de sofrimento da desertificação às secas, calamidades provocadas pela ausência de um diálogo genuíno que é o caminho seguro para sintonizar o nosso mundo num lugar mais feliz e melhor.

A gente de Teatro, é quase como se tivesse sido golpeada com uma tormenta, e oprimida pela poeira da dúvida e da suspeita que nos está envolvendo.

A visibilidade tornou-se quase totalmente eclipsada, e as nossas vozes estridentes e mal audíveis no clamor e divisão intentam em manter-nos aparte uns dos outros. De facto, se não fosse por nossa profundamente e enraizada convicção no diálogo manifestado excepcionalmente por formas de arte como o teatro, teríamos sido afugentados por uma tempestade que não deixa pedras por voltar para nos dividir. Nós devemos, consequentemente, enfrenta-los e desafiar aqueles que nunca se cansam de agitar as tempestades. Nós devemos enfrenta-los, não para os destruir, mas subir acima da atmosfera contaminada deixada no despertar de suas tempestades. Nós necessitamos reunir os nossos esforços e dedica-los a comunicar nossa mensagem e estabelecer laços de amizade com aqueles que chamam por irmandade entre nações e as gentes.

Nós somos meros mortais, mas o teatro é tão eterno como a própria vida.

Sultão Bin Mohammed Al Qasimi

Traduzido por: Francisco Luz

International Theatre Institute (ITI)


Mensagem do Dia Mundial do Teatro* (Portugal)

Neste Dia Mundial do Teatro quero manifestar a minha admiração por todos aqueles que ao longo dos tempos dignificaram e fizeram desta arte e profissão um exemplo de vida, de manifestação artística e de mensagem política. Quem suportou a violência da censura de antes do 25 de Abril e recebeu a missão de comunicar e criar em liberdade, não pode ignorar a sua responsabilidade.
A todos aqueles que neste momento são gente de teatro, uma palavra de amizade, de solidariedade e confiança num futuro que estamos a criar.
Posso dizer que ser de teatro é ser maior, é ser diferente, é ser responsável. Vivemos numa época de preocupação com a guerra do Iraque, com a fome, com as desigualdades sociais, com a prostituição, o racismo e o flagelo da droga. Trabalhamos para um público que partilha das nossas preocupações.
Tenho o maior orgulho nos meus colegas e nos meus amigos. O egoísmo de que nos acusam é resultado da paixão que temos pela nossa profissão.
Um profissional vive, ri, sofre e ama profundamente o teatro.
É estranho quando nos deparamos com situações que pensamos que sabemos resolver. Quanto mais sabemos, mais temos a noção de que ainda há muito para aprender.
Aos mais novos, àqueles que por vezes terminam os seus cursos e depois ficam à espera de uma oportunidade, àqueles em quem eu acredito que serão o teatro do futuro, que serão os responsáveis por esta profissão maravilhosa, única. Garanto que vale a pena! O teatro não esquece aqueles que o amam e o servem sem se servirem dele. A vossa oportunidade chegará.
Por último, uma palavra muito especial, um aplauso diferente para Isabel de Castro e Canto e Castro.
Assim se faz o Teatro.

Carlos Avilez

*Para Portugal, escrita pelo encenador a convite da Sociedade Portuguesa de Autores

fevereiro 21, 2007

À finura

SEGREDOS DA ARTE MÁGICA SURREALISTA
Para fazer discursos

Fazer-se inscrever, na véspera da eleição, na lista de
candidatos do primeiro lugar que ache bom proceder a esse
gênero de consulta. Cada um tem em si o material de orador:
tangas multicores, vidrilhos das palavras. Pelo surrealismo ele vai
surpreender o desespero em sua pobreza. Uma tarde, numa
estrada, ele sozinho cortará em pedaços o céu eterno, esta Pele do
Urso. Vai prometer tanto, que se cumprir mesmo uma
insignificância será uma consternação. Dará às reivindicações do
povo todo uma entonação parcial e derrisória. Obterá a comunhão
dos mais irredutíveis adversários num desejo secreto que acabará
com as pátrias. E conseguirá isso com apenas se deixando exaltar
com a palavra imensa que derrete em piedade e rola em ódio.
Incapaz de um desalento, brincará sobre o veludo de todo sos
desalentos. Será mesmo eleito, e as mais suaves mulheres o
amarão com violência.

em: Manifesto do surrealismo (1924) André Breton
Agora compreendo como certos patifes chegam ao poder. E vejo agora, com toda a clareza, que tudo o que fazem é para serem coerentes com a sua corrente estética.

fevereiro 13, 2007

Post de homenagem à abertura do blog Vieira Calado


UM BARCO NA NOITE


Está positivamente no fim do meu dia

Deixei para trás de mim a cidade
quando um último gesto do sol
alongar definitivamente a sombra dos prédios
quando a primeira rajada do vento
me trouxer o piar do mocho.

Entrarei pelo silêncio adentro
caminhando à luz escoada doutros mundos
e a negra enorme esfera impensável
continuará indiferente ao ruído dos meus passos.

No valado de pedras do caminho
escondeu-se há muito o réptil repugnante
e passarei entre as árvores estátuas pregadas na noite
com a mesma ligeireza tímida de há vinte anos.

Que horas são? Duas? Não. Quase três.

A esta hora uma mulher qualquer vende-se num quarto.
A esta hora um homem qualquer bebe sozinho num bar.
A esta hora um pai qualquer espera a notícia
e fuma muitos cigarros pensando
na grande responsabilidade do filho.
A esta hora uma virgem qualquer resiste ainda
mas não há solução para mais tempo.
A esta hora um imigrante qualquer, vai, atlântico fora
o olhar imenso pregado no horizonte.
A esta hora um velho qualquer morre definitivamente
e o parente mais próximo chora de mais terror que pena.
A esta hora o cadáver apodrece as horas
e o vizinho do lado vestiu-se de vez
duma eterna consistência fóssil.

A esta hora o sábio matemático alemão
estuda a inclinação necessária
para o astronauta
.....ir
......e vir
e saber-se enfim se temos vizinhos
do outro lado da lua.
A esta hora, nos confins do cosmos,
um matemático qualquer inventa a incógnita
e começa a resolver tudo
com uma simplicidade incrível.
A esta hora, uma estrela, ia jurar,
uma estrela qualquer ruiu estrondosamente
num céu qualquer
e já, caótica, se ergue nos destroços a afinidade
dos átomos,
que o tempo eterno soprou-lhe outra vez
o princípio.

A esta hora, ah, a esta hora,
a esta hora a prostituta faz o troco e sai
com a mesma naturalidade com que entrou.
A esta hora o homem do bar bebeu já muito
e perde a noção de tudo.
A esta hora, o pai é efectivamente pai e chora
de alegria,
sem saber que apenas cumpriu a lei do mundo.
A esta hora, a virgem, rendeu-se
sonâmbula, magnifica, com o brilho intenso
da eternidade
nos olhos.
A esta hora, o emigrante é já mais velho do que era
e menos tempo que o tempo necessário espera.
A esta hora o vizinho do lado e o outro
fazem planos para o tempo infinito.
A esta hora o sábio matemático e o outro
pressentiram nitidamente um fragor enorme
mas não têm a noção exacta da amplitude do espaço,
o sábio matemático e o outro não têm ideia nenhuma
de que a esta mesma hora
as minhas árvores de há vinte anos
me olhem com a mesma indiferença de estátuas,
que a minha timidez de há vinte anos
me assalte a face ao calor da terra
me apresse os passos ao piar do mocho
me esmague o sangue à imensidade das estrelas;
o sábio matemático e o outro não fazem ideia nenhuma
do que seja ver morrer o sol sobre a cidade
e entrar pela noite adentro como um barco,
só para estender-me ao comprido numa cama curta
e deixar que os olhos se me fechem lentamente
e que os sonhos me invadam no silêncio,
até que o sol, de novo no horizonte,
me erga o braço vacilante
e me ensine o poema que procuro
e por dias e dias
não encontro.

©Viera Calado

em : “ O FRIO DOS DIAS ”

Blog: Vieira Calado

janeiro 25, 2007

o mar é nosso


Num lugar ao Sul, banhado por luz e favorecido pelo amparo do oceano, começou a epopeia marítima de um pioneiro, que não ficou para a história. Tudo começou por alturas da boda de Zé Besugo, intrépido protagonista de uma estória por contar, e Justina, rapariga, formosa, a quem o destino burlou. (esta fabula deve ser contada, como exercício de catarse, sempre que se aplique)

Zé fardou-se, cuidadosamente, com a melhor farpela que possuía, pois era dia do seu casamento, tinha de se apresentar à prometida bem arreado. A fatiota estava um pouco gasta e andrajosa, digasse de passagem, era a sua única albarda domingueira, mas o importante era que dava para o gasto; a sua fraca e escanzelada figura, desfavorecia, definitivamente o traje, mas ele envergava-o com tal brio, que o conjunto dava-lhe ares de anafado; afinal, a farpela, disfarçava o cheiro a peixe, que já lhe estava entranhado no couro... Zé, embora mirrado (sabe-se lá pelo quê), era saudável e trabalhador, tinha alento na sua árdua tarefa de homem do mar; nas redondezas era considerado um bom partido.

Para Besugo, o mar, para além de ganha pão, foi sempre o absoluto companheiro, sua referencia, tinham ambos um temperamento instável, ás vezes calmo e outras turbulento, sem pedir licença a nada para trocar de humores, capaz de tragar tudo a seu belo prazer, ou ser infinitamente sereno e inspirador. Não tinham segredos um para o outro. Antes de ir enfrentar o destino, há muito arquitectado pelos seus progenitores, montou-se no seu bote mar dentro, como um brioso cavaleiro em cima de um corcel alado deslizando numa orbe de incertezas, confessou o que lhe ia na alma; pediu desculpa por ter de acasalar, pois para além de estar farto de bate-las, ali no meio do nada (razão pela qual lhe o peixe lhe agoniava), era uma relação debalde e estéril e uma fêmea é uma fêmea; por último, o casório tinha sido arranjado pelo pai, tendo este, no leito de morte, balbuciando “rapaz!... Não desonres a minha palavra...”, e deu o peido-mestre.

A futura concubina é que não estava pelos ajustes.

A prometida, original, sua irmã Julieta é que deveria de casar com o menino Besugo, mas dotada de um temperamento irascível e perverso, á primeira oportunidade fugiu, juntou-se aos saltimbancos; agora avia trambolhos por sua autodeterminação.
Justina, a segunda escolha, teve de se aguentar à bronca, e como era submissa, qualidade aparente e única, e em si admirável, que não era nativa do seu carácter, mas da criação que levara, pois fora educada, pelos pais, na melhor tradição do tipo: se não fazes o que eu digo, levas uma carga de porrada; estava domesticada. E promessa feita tem que ser cumprida!

Justina, tinha sentido o chamamento da mãe natureza, andava de olho num campónio que tinha uma porrada de vacas. Nos bailes lá do lugarejo, quando o via, como um farol, ficava com as faces rosadas e ofegante, como uma sirene de nevoeiro, mas nada que não se resolvesse com um abençoado arrepio na espinha, provocado pela prontamente servida, terapia de pau de marmeleiro; restavam-lhe, somente, os sonhos molhados.
Foi neste clima que Zé Besugo chegou à Serra.

Para lá ir e trazer de volta a mulher e o dote, no maior bem-estar possível, pediu emprestado um jumento a Manel Sabido, a má hora o fez, pois o Manel era o homólogo do velho do Restelo, teve de levar com ele por duas horas de uma perfeita angústia, capaz de levar ao suicídio um mouco, quase o fazia desistir de tudo. Mas o Zé, já a deitar fumo pelas orelhas disse-lhe “ Se não me emprestas a merda do burro nunca mais te dou peixe! ”; o caso ficou resolvido.

À chegada, nosso Besugo teve uma agradável surpresa, a sua noiva tinha um amojo porreiro e decidiu que assim que as formalidades estivessem cumpridas, incluindo o banquete, zarpava rumo a casa; pois queria lambuzar-se na fruta com a maior urgência.
A cerimónia não teve história, correu solenemente entre os amuos, por parte de Justina e a abertura de uma pipa de vinho palhete, que desfez todas as mágoas e trouxe alegria à festa; não há nada como o sangue do senhor para nivelar e amansar as criaturas (bom exceptuando quando ele, o vinho, é garreão).

Vieram os dois monte a baixo, o que fazia lembrar José e Maria, por altura da fuga para o Egipto, não fosse estar escuro como o breu, teria sido uma cena linda de relatar (para efeitos cinematográficos, neste caso, o menino foi substituindo pela alcofa, que levava o dote e outras bugigangas pessoais, ao cole de Justina ).

Já em casa, a Copula carnalis não foi consumada, pois Justina disse: não!... e não... , sem nenhuma justificação. Ela, aqui em casa do Zé, seu marido, estava num lugar estranho; o fedor a pexum era desmotivante; não gostava daquele homem magro e desengraçado, e para mais, estava cansada tinha feito a viajem mais longa de sua vida.
(É sabido, que a encosta da serra molda os seus habitantes com carácter forte e determinado, principalmente quando os maridos não sabem das técnicas mais aconselhadas, e há muito comprovadas, para vergar raparigas desobedientes; pois com a pressa de se vir embora o sogro não teve tempo de lhe dar uns conselhos.)

O nosso herói, toda a noite bufou, tinha-se metido numa enrascada. E, de mar manso que era nessa tarde estava-se a levantar uma tormenta, decidiu que assim que houvesse luz do dia, resolvia o problema; bem dito, bem feito. Assim, quando o dia clareou tirou Justina da cama, à força, e arrastou-a para a praia, que ficava logo ali.
Mostrou-lhe o mar e disse-lhe o que ele sempre soubera “ Isto é tudo meu! ”, como quem diz grande puta já viste o que vais perder.

A, simples Justina ainda com os olhos tremelgados e encadeada pela luz da alvorada, pensou que estava a sonhar, nem nos seus devaneios mais contemplativos desconfiou de tal cenário ou lhe foi facilitada tal fantasia, era simplesmente admirável, era água a perder de vista; e com a parceria da luz do sol as tonalidades extraordinárias daquela madrugada ficaram-lhe para sempre gravadas ma alma. O seu querido esposo era o homem mais rico da terra.
Besugo, agora, era o homem mais rico do mar.

Deitaram-se a descobertas lascivas, e deitavam-se todas as vezes que o podiam fazer e noutras que não o deviam, de todas a maneiras possíveis e imagináveis; deram umas fodas do caraças, benza-te Deus...
Resultado, como era de esperar, nasceram moços com a facilidade só descritível ou demonstrável, pelo soltar da rolha de uma garrafa de champanhe, “ phooc... já está!”.

Teve a prova que até ali, o destino o tinha favorecido, quando pela feira franca veio uma trupe de saltimbancos, a reboque traziam uma dúzia de animadoras sociais, e entre elas Julieta. Foi lá molhar o bico, mas só para tirar dúvidas (garanto que estas atitudes só são justificadas porque os homens têm um espírito inquisitivo, por princípio). A visita de estudo foi só para recolha de dados qualitativos, pois os quantitativos só aos azeiteiros interessam; e realmente até não estava mal servido.

Mas, tudo isto foi sol de pouca dura, com o passar dos anos, Justina, como não podia deixar de ser, foi acometida de dores de cabeça intratáveis com a pontualidade dum Grã-Bretão, o que era bastante suspeito, mas como já tinha ouvido falar desta condição clinica no ambulatório da tasca do Manel Sabido, considerou este padecimento como uma contrariedade.

Com o passar do tempo, Justina Besugo foi ficando cada vez mais amarga, tudo lhe trazia aborrecimento, desatinava por tudo e por nada, e o bom do Zé é que pagava as favas; a vida deste miserável estava a ficar de veras miserável. Não havia nada que o coitado fizesse, que fosse aprovado pela intratável da sua consorte, tudo merecia a sua condenação e castigo, fornecido em alarido desabrido e áspero.
Mas ela era simplesmente infeliz.

Naquele dia, não foi ao mar porque estava tempo de sueste, e ir para casa estava fora de questão, lá o ciclone era ainda mais revolto; aquela mulher arisca estava a dar cabo da cabeça do mareante, que já estava a ficara almareado com tanta borrasca. Foi para tasca do Sabido, e entre um copo de branco e outro de tinto, aparecer-lhe na cachimónia o esboço de uma grande decisão. Ao fim de mais meia dúzia de copos já estava o plano traçado, e disse ao taberneiro “ vou mas é para o mar que lá é que eu estou bem”, acabada a frase, “ala – paquete”, foi direito ao bote com o Manel em seu encalço, na tentativa de impedi-lo de fazer uma loucura.

“ Oh homem não faças isso que o mar está bravo, isso não te vai levar a nada.”
Agarrando-se aos tomates, Zé Besugo disse, gritando, no meio das ondas “ toma lá cabrão “.
E desapareceu de vista.

Justina levou a sua grei a visitar aquele colossal sepulcro, que lhe levar o companheiro, e em silencio contemplaram o incomensurável encanto de um dia de sol.
Vestiu-se de negro por um breve compasso.

Levado para além do horizonte, passou uma série de dias no mar sem saber por onde andava. A ironia é, que a sua sobrevivência deveu-se às sopas de couve e às comidas que foram importadas com a chegada de Justina à sua vida; pois, por esta altura de sua existência já não era o esmifrado cadavérico d’outrora, tinha até um ar agradável.

O destino e a brisa de Oeste transportaram-no para o além, por mares nunca antes sulcados e aportou numa terra do outro lado do mar.

Fez a primeira travessia marítima não oficial da história.

Na praia estava uma rapariga trigueira de mamas ao leu, era a coisa mais linda que já lhe passara pelos olhos; agora percebeu porque firmava a vista no horizonte, e ela também.
Foi feliz.

E a Justina aviava-se em dias de feira de gado.


Acta est fabula




janeiro 11, 2007

De visu


Vagueava, aqui pela web, para matar saudades de um velho companheiro. É então que! Encontro uma foto, ali prostrado e disforme numa sucata estava o velho Fiat G-91, repousa entre outros corpos; estes mais terrenos. Esta visão do velho guerreiro alado, antes intrépido agora humilde e mutilado, causou-me algum abalo. Na memória surgem recordações. Outro tempo e outro lugar.
...] To die, to sleep – no more –
and by a sleep to say we end

The heartache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to. ‘Tis a consummation
Devoutly to be wished.
To die, to sleep – To sleep –Perchance to dream.
Ay, there’s the rub. […

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Saudações a todos os que trabalharam e voaram nesta maquina fabulosa.